‘Travestis eram apedrejadas o ano todo e aceitas só no Carnaval’, diz Walkiria La Roche, artista de BH


Expulsa de casa aos 16 anos, encontrou acolhimento na arte que descobriu em casas noturnas. Projeto multiplataforma resgata história queer da cidade, neste documentário em áudio publicado no Walkiria em apresentação no Palácio das Artes, em Belo Horizonte
Arquivo pessoal/ Walkiria la Roche
“Eu saí da minha casa, literalmente, com um saco de lixo. Como meu pai me agrediu fisicamente, eu saí com a roupa que eu estava. Peguei só esse vestido, coloquei no saco do lixo. Quem me acolheu foram as minhas amigas, a Luisa, a Cristal — que levou roupas dela para eu vestir”.
Este foi o começo da história de Walkiria La Roche, uma das mais icônicas artistas da cena LGBTQIA+ de Belo Horizonte. Aos 16 anos, ela foi expulsa de casa.
E tinha um vestido, de uma apresentação que havia feito em uma quermesse no bairro Pindorama, na Região Noroeste. Foi na comunidade que encontrou amparo.
Walkiria nos áureos tempos da Josefine, na Savassi
Arquivo pessoal/ Walkiria la Roche
Como a própria casa não foi este lugar, Walkiria teve sua existência acolhida em espaços como o antigo Plumas e Paetês, destinado originalmente a mulheres lésbicas. Walkiria é a memória viva de vários desses locais, por onde transitou se apresentando e, depois, fazendo direção artística.
Fez seu primeiro show no Bar Soft, na Rua Rio de Janeiro, nos anos 1980. E depois, nos anos 1990, foi para a Boate Fashion. Ela também tem recordações da Lurex, uma casa enorme que funcionou na Tupis, no Barro Preto. Esteve, mais tarde, à frente da Pagã, na Rua Padre Odorico, no bairro São Pedro.
“Foi a primeira casa que eu dirigi sozinha. E ali tivemos oportunidade de contratar muitas artistas. Isso ainda na década de 1990. De lá, teve a EXESS, que antecede a Josefine, na Antonio de Albuquerque. Naquele endereço, depois a Josefine, na década de 2000. Funcionou por 18 anos — fechou um pouquinho antes da pandemia”.
Maus bocados
Walkiria não revela a idade, e faz questão de ir e vir no tempo, como num jogo de ilusionismo, para trucar a cabeça do interlocutor e evitar que a gente mesmo faça as contas. E ela passou por bocados na história da cidade, no começo da carreira.
“Havia a tipificação da vadiagem e existiam dois delegados de BH que prendiam, a bel-prazer, as pessoas travestis. Eles iam até o bairro Bonfim e prendiam mesmo. Era a polícia de costumes; tinham a ‘liberdade poética’ de prender as pessoas que estivessem andando nas ruas. Uma vez, eu estava pegando ônibus da Afonso Pena. Tava chovendo, desci, a polícia me parou, pediu para abrir a bolsa, perguntou se eu tava com gilete na boca, pegou as minhas coisas todas e jogou no chão. Sorte que eu não apanhei nem fui presa. Mas perdi a noite, o patrão não me deixou trabalhar. Foi muito pesado esse período; pegavam as travestis e jogavam no sumidouro da Lagoa da Pampulha. Tenho amiga que já voltou de peruca na mão, ensopada, e contou para gente”, disse.
Mais preconceito
Quando houve a epidemia de Aids, novo capítulo de preconceito.
“Os camelôs não permitiam que as travestis andassem nas ruas, na época do Gapa (Grupo de Apoio e Prevenção à Aids), ali na Tamoios. As primeiras travestis que foram acometidas pela Aids eram hostilizadas – eles jogavam tomate e legume podre. Foi uma época de horror. Os donos de casas noturnas não gostavam que a gente falasse de prevenção à Aids, sobre uso de preservativo, que não era moda. Eu entrevava e falava mesmo, porque a gente tinha pânico”, contou.
Primeira vez
Sobre a primeira Marcha GLS, ela também tem lembranças.
“As pessoas foram mascaradas à primeira parada do orgulho gay, criada pela Além, uma ONG. A Soraya Menezes propôs a parada. Não existia internet, então a divulgação só acontecia graças às artistas que divulgavam nos microfones das boates. Assim mesmo, não foram muitas pessoas, e quem foi foi mascarada. Elas colocaram máscara de super heroi. Era para esconder o rosto mesmo.Nós não, eu já andava na cidade. Eu não tinha essa imagem do perigo da rua durante o dia. Como eu saí de casa cedo, eu não tinha esse medo. Sempre andei de acordo com o gênero que eu me identificava. E por isso, fui expulsa de casa, porque eu burlava as coisas para customizar a roupa. Eu tinha cabelo grande, enorme. A parada foi um choque, mas ali também houve publicação que deu força”, afirmou.
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