Mau cheiro, água escura, ardência nos olhos: mortandade de peixes altera cenário no minipantanal paulista


g1 percorreu de barco o trecho mais afetado, em São Pedro (SP). Cenário impressiona até pescadores que trabalham há décadas no local, que relatam reflexos no ecossistema local, no turismo e nas famílias que vivem do que o rio provém. Pescadores relatam reflexos de mortandade de peixes na APA Tanquã, em São Pedro
Há cinco dias, a beleza oferecida por passeios de barco na Área de Proteção Permanente (APA) Tanquã-Rio Piracicaba, conhecida como minipanantal paulista, é invadida também pelo mau cheiro, ardência nos olhos e trechos onde o barco chega a ter dificuldades para atravessar devido à quantidade de peixes mortos que tomam toda a superfície da água.
A tragédia ambiental, segundo a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), foi provocada pela descarga de poluente por uma usina de açúcar, que nega. O órgão e o Ministério Público investigam o caso.
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O g1 percorreu de barco o trecho mais afetado, em São Pedro (SP). Todo o Tanquã ocupa uma área equivalente a 14 mil campos de futebol, nas cidades de Anhembi, Botucatu, Dois Córregos, Piracicaba, Santa Maria da Serra e São Pedro.
Em um trecho na Chácara Estrela, em São Pedro, o mau cheiro é perceptível já nas margens do rio. Logo no ponto de onde saem barcos de pescadores e guias de passeios já é possível avistar animais mortos que tentaram sobreviver em áreas mais rasas.
Peixes mortos se concentram no ponto de onde partem os barcos, em trecho do Tanquã em São Pedro (SP)
Rodrigo Pereira/ g1
“O peixe passava por debaixo e vinha na beiradinha para respirar, só que esse peixe que vem para a beirada não volta mais para o meio. Ele morre na beirada. Se você olhar ali, o que é corvo ali para cima. Está fedendo”, alerta o pescador Antonio Márcio Caetano, de 48 anos, que há 25 anos pesca no local e não tem dúvida que é a maior mortandade que já viu.
É possível ver que outras aves têm se alimentado dos peixes mortos ou que estão agonizando.
Mas Antonio alerta que o cenário mais impressionante não é visível por quem está às margens do rio. São pontos que só podem ser acessados de barco, principalmente aqueles onde formações vegetais criam espécies de bolsões, onde vários peixes vão se enroscando.
“Tem curva do canal aí que você não passa. Daqui a gente não vê. Não passa de tanto peixe morto que tem”.
Os pescadores Antonio Márcio Caetano e Nivaldo Albino de Siqueira dizem que nunca viram mortandade de peixes dessa proporção
Rodrigo Pereira/ g1
Mortandade atingiu ‘bercário’, diz pescador
Segundo os pescadores locais, essas “curvas do canal” são pontos buscados por peixes para procriação, pela possibilidade de se esconderem de ameaças nas partes debaixo dessas vegetações.
“O que morreu aí é matriz [peixes reprodutores]. Porque aqui é um berçário, na realidade. É até proibido pescar nesse trecho aqui. Então, a gente pesca de um certo ponto pra baixo. […] Atingiu o coração [do rio]”, lamenta Antonio.
Peixes mortos em ‘curva de canal’ do Tanquã, em São Pedro
Rodrigo Pereira/ g1
‘Cheiro de veneno na água’
A chegada aos trechos cobertos por peixes mortos é imediatamente acompanhada pelo mau cheiro intenso e uma ardência que chega a fazer os olhos lacrimejarem.
“É o cheiro do veneno na água, né? Chega ali e arde o olho da gente. Imagina o peixe na água, então. Ele não consegue sobreviver. Esse veneno tira toda a oxigenação da água”, lamenta o pescador José Verones, conhecido como Paraná, de 65 anos. Há 30 anos ele vive do rio, pescando e realizando roteiros de turismo.
José Veronés, conhecido como Paraná, observa água de APA do Tanquã tomada por peixes mortos
Rodrigo Pereira/ g1
‘Chega a queimar os olhos’
José acompanhou a reportagem no roteiro e sua indignação ao comentar o dano ambiental era evidente.
“Nunca vi uma coisa dessa na minha vida. E é uma grande tristeza hoje a gente ver acontecendo uma coisa dessa daqui. Eu falo para você: com 10 anos não se recupera mais essa quantidade de peixes que morreu”.
Em alguns pontos, peixes mortos deixam rastros de cor mais clara por pontos onde foram arrastados pela água. “Tem uma nata em cima da água. E o fedor que tá… Chega a queimar seus olhos”, lamenta o pescador Nivaldo Albino de Siqueira, de 53 anos.
Além disso, a cor escura chama a atenção. “Ontem, parecia carvão a água de preto que tava”, relata Antonio.
Água escura e ‘nata’ descrita por Nivaldo
Rodrigo Pereira/ g1
Efeitos no ecossistema e turismo
E a morte de toneladas de peixes já tem afetado o ecossistema local, de acordo com os pescadores. “Nem as capivaras querem ficar na água. Fica tudo no barranco”, conta Nivaldo.
O reflexo para a fauna também afeta o turismo no local, já que um dos principais motivos desse tipo de atividade na região é para observação de aves e outras espécies.
Imagens aéreas mostram milhares de peixes mortos no Tanquã após despejo irregular de usina
No local vivem 94 espécies de aves aquáticas, 16 das quais realizam movimentos migratórios e oito estão ameaçadas, no estado de São Paulo.
“Eu mesmo levo pessoas fazer turismo, tirar fotos de pássaros e tudo. Eu tenho certeza que a maioria dos pássaros vai sumir daqui”, afirma José.
Mortandade de peixes teve início há cinco dias no local, segundo pescador
Rodrigo Pereira/ g1
Ele estima que cerca de 20 espécies de peixes estão entre as mortas no local. Entre elas, estão o Piracanjuba e o Matrinxã, ameaçadas de extinção.
Entre os mamíferos e os répteis ameaçados de extinção, o Tanquã tem registros da onça-parda, lobo-guará, jaguatirica e o jacaré-de-papo-amarelo.
Reflexos para a comunidade
José também conta que haverá reflexo para dezenas de famílias que vivem do que o rio provém. “Eu calculo que mais de 50 famílias. Mais de 50, só nessa região minha aqui”, calcula.
“Meu sentimento hoje de ver isso aqui é uma grande tristeza. Não só para mim como para todos os pescadores que vivem da pesca. Têm suas famílias para tratar, seus filhos para cuidar e hoje estão pensando como que vão fazer para sobreviver da pesca e não tem mais peixe”, lamenta o pescador.
Antonio e Nivaldo observam a água do Tanquã: sustento para famílias comprometido
Rodrigo Pereira/ g1
Antonio conta que uma crise de diabetes e uma pneumonia o afastaram da pescaria recentemente, e que o dano ambiental no rio veio na sequência. E também diz que o reflexo não ocorre apenas em sua vida.
“Tem a vilinha de pescadores ali que vive do peixe. Tem guias de pesca que vivem de levar pessoas para pescar que nem a gente. Afeta não só nós. Afeta bastante gente”, conta.
“[O sustento] da minha família toda é daqui. Minha esposa, minha filha […] Dessa vez acabou com nós. Não tem mais peixe”, diz Nivaldo.
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