O que são evangelhos apócrifos, textos que já foram condenados pela Igreja


Os evangelhos canônicos não foram as únicas versões sobre a vida de Jesus que circularam na Antiguidade. O beijo de Judas, momento em que ele teria traído Jesus, em pintura de Giotto, do início do século 14
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Em tese, tudo aquilo que importa para o cristianismo sobre a vida de Jesus está contada em quatro textos não muito longos, atribuídos a quatro dentre os primeiros de seus seguidores: Mateus, Marcos, Lucas e João. No total, são 89 capítulos narrando as principais passagens daquele judeu pobre nascido na Palestina que arrebanhou discípulos por suas pregações e, conta-se, teria realizado alguns milagres.
Para os cristãos, estas narrativas contêm “a verdade”.
Contudo, é de se imaginar que não foram as únicas versões sobre a vida de Jesus que circularam na Antiguidade. E que, se os evangelhos canônicos se atêm basicamente sobre a vida adulta e a morte — e o episódio da chamada ressurreição —, outros textos também se ocuparam em preencher lacunas a respeito daquele personagem que, nos primeiros séculos da nossa era, começava a se tornar um mito, famoso e conhecido a ponto de fazer nascer, a partir de suas histórias, uma nova religião: o cristianismo.
Chamados de apócrifos, esses relatos que não foram incluídos no cânone oficial da Igreja sempre despertaram a curiosidade de religiosos, pesquisadores e historiadores.
E a própria relação da Igreja Católica com esses textos também mudou: se no início sua leitura era malvista, tida até mesmo como uma postura herética, hoje se entende que esses textos enriquecem a experiência da fé — e se não são considerados “a verdade”, ao menos contêm elementos preciosos sobre a vida daqueles primeiros cristãos, os que se ocupavam em assentar as ideias e histórias de Jesus nas comunidades que passaram a seguir essa então nova religião.
“Os evangelhos apócrifos e quase toda a literatura apócrifa do Segundo Testamento [o Novo Testamento] exerceram fascínio e despertaram curiosidade nos cristãos, desde a sua origem, com a visão alternativa dos grupos opositores ao cristianismo apostólico que, aos poucos, ia se tornando hegemônico”, comenta à BBC News Brasil o frade franciscano Jacir de Freitas Faria, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib), e autor de seis livros sobre os apócrifos.
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Faria estudou o tema em seu doutorado, realizado na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte, e mantém um canal no YouTube sobre o assunto.
Segundo ele, o cristianismo popular devocional nos primeiros séculos “bebeu da vasta fonte apócrifa complementar aos textos canônicos”.
“A influência dos apócrifos do Segundo Testamento foi, e continua sendo, objeto de estudo de muitos pesquisadores, os quais procuram entender os motivos da rejeição e da aceitação desses escritos ao longo da história do cristianismo”, acrescenta.
A própria terminologia já é carregada de juízo de valor. “Apócrifo” vem do grego e significa “coisas escondidas”.
“A importância dos apócrifos dependeu de condicionamentos históricos na vida da Igreja e do modo como ela entendeu a literatura apócrifa”, diz Faria.
Para o teólogo e cientista da religião Marcelo da Silva Carneiro, pesquisador do cristianismo primitivo e professor na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), é preciso situar os apócrifos como “material elaborado a partir da cultura popular cristã primitiva, que registra elementos não comentados ou registrados nos textos que depois foram canonizados”.
“A não aceitação [pela Igreja] está ligada a questões como a origem do documento não estar ligada a um apóstolo, ou ser de origem de grupos rivais dos ‘pais da Igreja’, ou por transmitir ideias que foram percebidas como desviantes daquelas que foram colocadas nos textos canonizados”, explica Carneiro, à BBC News Brasil.
Quando o bispo Eusébio de Cesareia (265-339) resolveu fazer aquela que é considerada a primeira tentativa de organização dos textos cristãos que circulavam, ele classificou alguns como canônicos, inspirados, e opôs a eles os que considerou heréticos ou apócrifos — entendendo-os como “não confiáveis para a Igreja”, nas palavras de Faria.
“O substantivo apócrifo tornou-se sinônimo de mentiroso”, contextualiza o frade franciscano.
“O grande público e a maioria dos cristãos não conhecem o conteúdo desses textos pelo fato de a Igreja ter ensinado que eles fazem parte da literatura que se opôs ao cristianismo que se tornou hegemônico, sendo escritos após os textos canônicos. Tudo isso levou os cristãos a olharem os apócrifos com preconceito, sustentando a premissa de que são falsos, heréticos, fantasiosos e, portanto, não são critérios para a fundamentação do Jesus histórico”, acrescenta.
Na introdução do livro Evangelhos Apócrifos – Gregos e Latinos, uma edição traduzida e comentada pelo professor Frederico Lourenço, da Universidade de Coimbra, ele questiona por que “o termo ‘apócrifo’ evoca, de imediato, os sentidos pejorativos de ‘falso’ e de ‘herético’?”.
Lourenço prossegue afirmando que, de certo, é “porque se projetou nele um juízo de valor acerca de textos cristãos não canônicos, tidos como falsificações atentatórias da ortodoxia”.
Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do cristianismo primitivo, o historiador André Leonardo Chevitarese defende que é melhor evitar usar o termo apócrifo “porque, de alguma forma, isso é uma maneira de jogar uma sombra sobre as boas-novas que não entraram no corpus do Novo Testamento e, ao mesmo tempo, lançar luz sobre aqueles quatro evangelhos que fazem parte do Novo Testamento”.
“Tudo é literatura antiga cristã, então [nesse contexto] não existe apócrifo, não existe texto canônico. O que existe são literaturas produzidas por autores cristãos”, argumenta ele, à BBC News Brasil.
“Esses evangelhos que não entraram no corpus do Novo Testamento falam sobre experiências reais e concretas, de como ao menos o autor do texto via e experimentava o que era o cristianismo. Esse é o ponto central”, diz ele.
“O corpus [ou seja, os livros canônicos, que acabaram eternizados pela Bíblia] não foi algo natural. Foi uma criação das elites cristãs no final do século 4º, início do 5º, e dali por diante”, afirma Chevitarese.
Pintura do século 19, de Carl Heinrich Bloch, ilustra a ressurreição de Jesus ao lado de dois anjos
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Quantidade é incerta — e mais podem ser descobertos
Ainda hoje fragmentos de textos considerados apócrifos acabam sendo descobertos por arqueólogos em escavações ou mesmo historiadores que se dedicam a decifrar textos antigos arquivados em bibliotecas pelo mundo. E, claro, uma infinidade de obras deve ter sido escrita e seus registros se perdido completamente, sem que chegassem aos tempos atuais.
“Há uma lista muito extensa de livros apócrifos. Centenas, dependendo de como se os conta”, comenta à BBC News Brasil o teólogo, filósofo e jornalista Domingos Zamagna, professor na Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) e na Faculdade São Bento.
“Chegaram até nós nos idiomas latim, grego siríaco, copta, armênio, georgiano, paleoeslavo e etiópico antigo”, diz ele.
Zamagna conta que “há manuais que elencam 113 livros apócrifos, 52 do Antigo Testamento e 61 do Novo, certamente serão encontrados ainda outros”.
“Ao longo de mais de mil anos [do século 2 a.C ao século 10 d.C], muitos livros considerados apócrifos foram escritos, sobretudo nos três primeiros séculos do cristianismo”, contextualiza o religioso Faria.
“A lista dos livros apócrifos é grande. São em torno de 52 livros que dizem respeito ao Primeiro Testamento [o Antigo Testamento] e 128 ao Segundo Testamento, totalizando 180, computando livros e fragmentos encontrados.”
O especialista pontua que mais de 30 deles foram escritos nos 2 primeiros séculos de nossa era.
“Na minha próxima obra sobre o tema, estarão traduzidos a maioria deles”, conta. — a previsão é de que o livro saia em agosto deste ano.
Dentre esses textos, o cientista da religião Carneiro lembra que ao menos 15 são evangelhos — ou seja, narrativas que procuram compreender de Jesus.
“Apenas alguns foram preservados de forma completa, como o Evangelho de Tomé. Muitos outros tiveram o manuscrito corrompido ou foram encontrados apenas fragmentos, como é o caso do Evangelho Sobre a Infância de Jesus”, acrescenta.
Lacunas preenchidas
Maria Madalena e Jesus, em obra de Ciro Ferri, do século 18
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Lourenço escreve que parte dos evangelhos apócrifos dedicou-se à alegada “revelação de ditos que Jesus teria proferido em contexto privado, tendo como únicos ouvintes os 12 apóstolos e Maria Madalena”.
Outros buscaram “dar resposta à curiosidade dos cristãos sobre a biografia de Jesus”, incluindo aí sua infância e adolescência — períodos não contemplados por Marcos e João e pouquíssimo abordados por Lucas e Mateus.
“A descoberta dos livros apócrifos é um mundo novo que se abre para muitos judeus e cristãos. Adentrar nessa literatura não é fácil”, pontua Faria.
“Os apócrifos do Primeiro Testamento procuraram discutir questões judaicas como a predestinação, o destino dos pagãos, a salvação e o juízo de Deus em relação ao ser humano”, diz ele.
Como os evangelhos canônicos negligenciaram muitos aspectos da biografia de Jesus, há textos apócrifos que procuram suprir as lacunas, com tais informações tendo sido possivelmente inventadas no segundo século.
Pesquisador associado da Hagiography Society, nos Estados Unidos, o estudioso de textos antigos Thiago Maerki destaca à BBC News Brasil que “alguns elementos em que a Igreja acredita atualmente surgiram da leitura de textos apócrifos”. Exemplos são o dogma da virgindade de Maria e a narrativa de sua assunção aos céus.
“A Igreja não pode ignorar. São textos antigos que remontam uma tradição antiga da Igreja. São registros de crenças e tradições daqueles cristãos do início do cristianismo, que muitas vezes estavam à parte do ensinamento oficial”, comenta ele.
Outra história cujos detalhes só aparecem em texto apócrifo é a de José, o carpinteiro que teria sido o pai humano de Jesus. “Há um evangelho que conta o que teria acontecido com ele e como havia sido o relacionamento entre os dois”, descreve à BBC News Brasil o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Parece-me que a preocupação desses evangelhos era cobrir pontos obscuros da vida de Jesus”, pontua o professor.
“A análise interna do material não canônico […] pode evidenciar sua dependência das tradições conhecidas como canônicas, em relação às quais tende a explicar, a seu modo, o que nas narrações sobre Jesus não ficava claro, o que a nível popular parecesse pouco claro”, comenta à BBC News Brasil o padre barnabita Giovanni Rizzi, professor emérito da Pontifícia Universidade Urbaniana, em Roma.
“Provavelmente se trata de elaborações lendárias, sem real fundamento histórico, mas com a intenção de responder a necessidades populares concretas”, diz ele.
Um exemplo é como o episódio da ressurreição de Jesus é narrado no Evangelho de Pedro.
“Enquanto nos textos canônicos nunca se descreve o momento da ressurreição de Jesus no seu sepulcro, neste não canônico se fala do terremoto, do estupor dos guardas e de Jesus que sai ressuscitado ao lado de dois anjos, com o estandarte da cruz”, comenta o padre Rizzi.
Santa Ana, com Maria no colo, em ícone grego feito por Angelos Akotandos no século 15
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“A iconografia acolhida em nossas igrejas recorre facilmente a essas imagens não canônicas para dizer algo sobre o momento da ressurreição”, pontua Rizzi. “Representações iconográficas da anunciação do anjo a Maria são outras tantas elaborações baseadas em textos não canônicos.”
O padre explica que “a elaboração não canônica tenta conciliar dados diferentes das tradições cristãs em um único relato imagético”.
Outro ponto interessante é que os evangelhos da Bíblia mencionam “irmãos” de Jesus — hoje isso costuma ser interpretado na realidade como “parentes”, como primos, membros do mesmo clã familiar.
“Nos evangelhos não canônicos sobre a infância de Jesus, pensou-se em resolver a questão da virgindade de Maria, a mãe de Jesus, elaborando uma explicação de que José, quando se casou com Maria, já era bastante velho e, viúvo, teria vários filhos e filhas de um casamento anterior”, acrescenta Rizzi.
E, assim, “mesmo sem aprovação eclesiástica”, como frisa o teólogo Zamagna, os escritos apócrifos sobreviveram — justamente porque trouxeram respostas a questões que passaram a circular entre os primeiros cristãos.
“Serviram para cultivar algumas religiosidades populares e fornecerem algumas informações, como os nomes dos pais de Maria, Joaquim e Ana; os pormenores do nascimento de Jesus numa gruta, com a presença de um boi e um jumento; o número e os nomes dos magos; o nome do soldado romano que perfurou com a lança o lado de Cristo; elementos para a iconografia cristã”, enumera o teólogo.
“Os apócrifos cristãos procuram preencher lacunas sobre a vida de Jesus e seus seguidores, sejam de forma complementar, aberrante ou alternativa em relação aos canônicos, ainda que tenham recebido influências de cristianismos gnósticos”, diz Faria se referindo à doutrina religiosa dos primeiros séculos da Igreja que mistura aspectos do cristianismo com judaísmo e algumas crenças orientais vigentes na região.
Ele classifica os apócrifos do Novo Testamento em três grupos. Os aberrantes são aqueles que exageram nas descrições de Jesus e seus seguidores. Os complementares trazem informações adicionais aos textos canônicos, “demonstrando que havia outras formas de pregação e catequese, sendo que algumas foram compiladas nos apócrifos, outras se mantiveram na oralidade”. E os alternativos, que traziam narrativas não compatíveis com o cristianismo que se tornou status quo.
“Os apócrifos resgatam a face dos cristianismos perdidos ou excluídos, possibilitando-nos o conhecimento dessas correntes de pensamento condenadas ao ostracismo, nas quais poderiam estar traços do pensamento de Jesus que foram aplastados pelo cristianismo que se tornou hegemônico”, destaca Faria.
“Os apócrifos do Novo Testamento revelam a luta desenfreada pelo poder, nos primórdios do cristianismo, entre suas lideranças. Nesse sentido, os apócrifos, sobretudo os gnósticos, evidenciam o papel, a liderança da mulher na era apostólica”, exemplifica ele.
A assunção de Maria aos céus, em obra de Rubens, do início do século 17
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Nesse quesito, Maria Madalena é o melhor exemplo. “Em dois livros de minha autoria sobre o evangelho de Maria Madalena ressalto a importância dela e sua relação com Pedro, no que se refere ao poder de liderança apostólica. Ela não aparece como prostituta nesse evangelho e tampouco nos evangelhos canônicos. No apócrifo ela é mestra e detentora dos ensinamentos do mestre”, salienta.
“As mulheres nesses materiais sempre têm um forte protagonismo, colocadas como líderes e até apóstolas”, complementa Carneiro.
O historiador Chevitarese também destaca a importância da narrativa desse evangelho, como um “bom exemplo acerca das tensões que gravitavam em torno dos papéis de liderança nos movimentos de Jesus sem Jesus ao longo dos três primeiros séculos”.
Outro texto que ele comenta é o o chamado Evangelho de Judas, que dá um significado diferente ao episódio da traição do apóstolo.
“Eles abordam a figura de Judas com Jesus o convencendo de que ele precisava agir, precisava matar o corpo de Jesus para liberar sua alma, o seu espírito. É uma nova roupagem que mostra que havia, para algumas comunidades, o problema de um discípulo ter traído Jesus”, analisa Chevitarese.
“Os apócrifos poderão eventualmente servir para completar aspectos da cultura, dos mitos, dos alcances e limites das diversas e longas épocas em que foi escrita e transmitida a Bíblia”, avalia o teólogo Zamagna.
“O fato desses materiais não terem sido oficialmente canonizados não tirou deles o efeito de manter as tradições ricas. Muitas coisas que os cristãos hoje pensam e creem vêm de textos apócrifos, e não dos canônicos”, afirma Carneiro.
Um exemplo que ele lembra é a afirmação de que os apóstolos Paulo e Pedro morreram em Roma. “[Isso] só pode ser explicado pelos apócrifos, que registram suas mortes”, destaca.
“Os canônicos nada falam da morte deles. Coisas assim são colocadas à parte, e não se fala nelas”, ressalta.
“Sobre Jesus, o que se fala são consideradas lendas, mas se compararmos com os textos canônicos, quando lidos com frieza e distância, não são muito diferentes. Logo, podem ter origem em situações concretas”, diz Carneiro.
Críticas e controvérsias
“Popularmente falando, apócrifo ou pseudoepígrafo designa um texto não autêntico, porque é de origem suspeita, duvidosa”, ressalta Zamagna.
“O termo tem decididamente um sentido negativo atualmente”, acrescenta.
“A Igreja Católica, há até bem poucas décadas, impedia aos leigos o acesso dos apócrifos. Eu, quando comecei a publicar sobre os apócrifos, em 2003, tive resistência por parte de vários bispos”, conta Faria. “Hoje, é mais tranquilo.”
O cientista da religião Carneiro relata que a “Igreja Cristã” — ainda não denominada Católica — quando chegou às esferas do poder em Roma, “decidiu proibir toda essa literatura”.
“Muita coisa foi queimada e perdida”, lamenta. “E, claro, os seguidores dessas tendências foram todos declarados hereges, em especial nos movimentos onde mulheres tinham mais espaço de poder”, diz ele.
“Em diferentes momentos da história, a Igreja chegou a condenar quem usava esses textos”, afirma à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre, em Roma, e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, também em Roma.
“A difusão desses textos nunca foi recomendada porque havia um medo de criar confusão. Mas agora, recentemente, há uma abertura mais científica a esses textos”, complementa.
O teólogo Moraes lembra que tais narrativas, em sua maioria, começaram a circular no século 2.
“Elas vão brotando e se consolidando. Vai haver basicamente quase 400 anos para que a Igreja tenha um mínimo de unanimidade em relação aos que deveriam ser canônicos e aqueles não aceitos”, contextualiza.
Ao longo da história do cristianismo sempre houve posicionamentos contrários e a favor do uso desses textos.
Ireneu de Lion (130-202), o Santo Irineu, foi um dos primeiros críticos. Segundo Zamagna, ele argumentava que tais livros continham “muitos erros”, intencionalmente “introduzidos para impressionar e confundir os simples”.
Primeiro tradutor dos textos da Bíblia para o latim, o teólogo Euségio Sofrônio Jerônimo (347-420), São Jerônimo, foi uma evidente voz contra tais textos. “Defendeu que pouco se podia usufruir da literatura apócrifa. Para ele, essa literatura era um delírio”, comenta Faria.
Outro santo, o teólogo e filósofo Agostinho de Hipona (354-430), tinha opinião diferente. “Ele reconheceu certo valor nos apócrifos”, diz o frade franciscano.
A organização do cânone da Bíblia remonta a essa época, século 4. Foi quando aqueles considerados “pais da Igreja” foram determinando o que era “livro inspirado” e o que não deveria ser adotado como “a verdade”.
O período foi de discussões intensas entre os líderes do cristianismo. “Havia uma agitação entre os membros daquele cristianismo primitivo. O debate fez com que alguns dos primeiros padres da Igreja escrevessem a respeito. Um deles disse que ‘muitos tentaram escrever o Evangelho: a Igreja possui quatro, as seitas antigas possuíam numerosíssimos’”, conta Maerki.
Hoje, o acesso aos apócrifos não é condenado pelo Vaticano. Zamagna lembra, contudo, que “a Igreja não incentivou nem incentiva a sua leitura fora do âmbito dos estudos especializados”.
“Atualmente, o pensamento da Igreja é que há coisas importantes nesses textos, embora nem tudo o que esteja ali, segundo a Igreja, seja ‘verdade de fé’. Hoje, certamente, a Igreja não proíbe esses livros”, avalia Maerki.
Moraes destaca que a literatura apócrifa “ajuda a compreender mais e melhor como o cristianismo se articulava em seu momento inicial”, tendo um “valor inestimável”.
Para o professor Lourenço, a leitura desses “textos marginalizados nos deixa vislumbrar o modo fascinante e diferenciado como as várias gerações de cristãos entenderam e veneraram a figura de Jesus”.
“Interpreta-se hoje, na Igreja, que esses textos são documentos históricos, embora o que esteja ali não é entendido como ‘verdade’, já que do ponto de vista religioso entende-se que os evangelhos canônicos foram ‘revelados por Deus aos autores’. Mas reconhece-se o valor cultural e a necessidade de se olhar historicamente.
“A principal relevância desse material é entender a pluralidade do protocristianismo, quando ainda não era uma instituição papal. Isso tem reverberação para os dias atuais”, acrescenta o cientista da religião Carneiro.
Padre Rizzi comenta ainda que estudiosos contemporâneos valorizam tanto a literatura judaica quanto a cristão não canônica.
“Porque tais textos refletem concepções, mesmo que parciais, mas ainda assim interessantes, para se entender o desenvolvimento das várias formas de judaísmo e cristianismo”, destaca.
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