A era do pop sáfico: como cantoras estão transformando amores lésbicos em sucessos pop


De Billie Eilish a Ludmilla, cantoras estão escrevendo abertamente sobre relacionamentos lésbicos e trazendo sua sexualidade para o centro de suas músicas. Artistas do ‘pop sáfico’ cantam abertamente sobre se relacionar com outras mulheres.
Reprodução
Em maio de 2024, uma das artistas mais ouvidas do mundo lançou uma música sobre sexo com outra mulher. “Eu poderia comer essa garota no almoço”, cantou Billie Eilish em “Lunch”. A faixa ficou em quinto lugar nas paradas globais.
“Lunch” foi tocada ao vivo pela primeira vez no mês anterior, no festival Coachella, nos EUA. No mesmo evento, Reneé Rapp, protagonista da nova versão de “Meninas Malvadas” e uma promissora cantora pop, se declarou para mulheres em um palco decorado com duas tesouras (uma alusão ao sexo lésbico). Também no Coachella, Ludmilla se apresentou ao lado da esposa com uma música sobre amor, sexo e casamento entre elas. E a jovem Chappell Roan cantou que precisava de uma “garota super gráfica ultramoderna” como ela.
A música pop sempre falou de amor e sexo. Mas as cantoras que dedicam essas músicas para outras mulheres nunca foram tão pop. No vídeo abaixo, veja trechos de clipes e entenda o fenômeno do pop sáfico:
A era do pop sáfico: como cantoras estão transformando amores lésbicos em sucessos pop
De onde vem o pop sáfico?
“Ela era uma sedutora, Brigitte Bardot / Ela me mostrou coisas que eu nem sabia / Ela fez ali mesmo, na varanda / Colocou seus dentes caninos no meu pescoço” (“Red Wine Supernova”, Chappell Roan)
As mulheres sáficas (que se relacionam com outras mulheres) não apareceram agora; muitas artistas são assumidas há décadas. Mas essa manifestação na música pop mundial é mais recente e tem a ver com uma presença mais “cotidiana” de pessoas LGBTQ+ na mídia.
“O que a gente tem visto nos últimos tempos é que, como as pessoas vão se assumindo mais, essa temática vai aparecendo. Em novelas, filmes, séries, entre artistas e apresentadoras de televisão”, contextualiza Joana Ziller, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do Grupo de Estudos em Lesbianidades (GEL).
Esse processo é essencial para entender o novo movimento de cantoras. Afinal, estamos falando em música pop, um gênero que reflete o que as pessoas consomem ou querem consumir. Se não houvesse aceitação do público, os casos seriam mais raros. “As pessoas vão se acostumando com o tema, entendendo que não há nada de errado e essa é a realidade. E vão se abrindo”.
Para a professora, isso dá espaço para a “circulação de algo que já existia”, mas não era público. “A questão é que agora, pessoas de grande visibilidade se sentiram confortáveis para falar de algo que já fazia parte do mundo.”
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g1 e Divulgação
A relação entre público e artista também mudou muito. “Historicamente, não havia um interesse tão grande na sexualidade dos artistas. Não era um elemento na construção da persona pública do artista”, lembra Thiago Soares, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisador de música e cultura pop.
Entre redes sociais e palcos, a carreira de um popstar passou a se entrelaçar com a sua vida pessoal. “A gente acabou ficando obcecado pela vida privada dos artistas e como ela reflete nas obras”, explica o professor.
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Para Thiago, à medida em que a sociedade discute gênero e sexualidade, artistas que trazem isso para a música começaram a ter um “traço diferenciador”. Em outras palavras, canções que expõem aspectos pessoais da vida dos artistas ficaram mais atrativas. Você pode se identificar pela história homossexual ou, ainda, se sentir mais próximo do artista só por saber mais sobre a parte pessoal.
Billie, Reneé, Chappell e Ludmilla cantam em primeira pessoa. Falam de afetos por outras mulheres em entrevistas. E escolhem, deliberadamente, trazer suas sexualidades como influência criativa e estética dentro de seus trabalhos.
E não fica entre só as mais famosas. Muitas cantoras do pop alternativo já faziam e seguem fazendo músicas que falam desse assunto, conquistando um público cada dia maior: nomes como King Princess, Hayley Kiyoko, Girl in Red, Kehlani e Fletcher, que veio ao Lollapalooza Brasil neste ano.
É quase um subgênero musical: o pop sáfico, em que cantoras pop lésbicas e bissexuais não se escondem por trás de fachadas heterossexuais. Na verdade, escolhem trazer seus desejos por mulheres para o cerne de seu trabalho.
Fugindo do estigma
Ai, que saudade dela / Do cheiro dela, da boca dela / Foto no fundo da tela do meu celular” (“Real Valor”, Carol Biazin)
Ao contrário dos homens gays, relações sáficas apareciam ocasionalmente na mídia. Mas Thiago diz que, na maior parte das vezes, cenas de mulheres se beijando (ou simulando um contexto sexual) eram feitas para atender ao desejo masculino.
“A cultura sempre olhou para o corpo da mulher para enquadrá-la para o espectador masculino. E a interação lésbica tem um lugar na pornografia masculina.”
Um caso conhecido é o videoclipe de “Can’t Remember to Forget You”, de Shakira e Rihanna, em que as cantoras se acariciam. Enquanto isso, elas cantam sobre um homem: “Eu faria tudo por aquele garoto”.
Shakira e Rihanna no clipe de ‘Can’t Remember to Forget You’.
Reprodução/YouTube
Para Thiago, esse tipo de vídeo é ambíguo: não é negativo, tampouco positivo. Por um lado, o clipe “adere ao imaginário masculino”. Mas por outro, em um momento que a representatividade de mulheres sáficas não era frequente, o clipe mostrava relações que a sociedade “tentava ocultar”.
“I Kissed a Girl” (2009), sucesso de Katy Perry, é outro exemplo dessa ambiguidade. Em um clipe sensual com mulheres hiperfemininas de lingerie, a música descreve uma experimentação de uma mulher que namora um homem, mas beijou outra mulher. A homossexualidade aparece como uma aventura, não como uma identidade.
Mas por muito tempo, com tão poucos sucessos pop sobre o tópico, “I Kissed a Girl” foi uma das principais músicas “sáficas” conhecidas, amada inclusive por mulheres lésbicas e bissexuais.
Para Joana, essas músicas e vídeos chamavam a atenção justamente por falar de algo que, até então, não era comum. “Eram feitos para ser a exceção”.
A lesbianidade já serviu inclusive como estratégia de marketing. Nos anos 2000, uma dupla russa chamada t.A.T.u fez sucesso com o vídeo “All The Things She Said”, um dos mais controversos da década. As cantoras se beijavam no clipe, que foi banido em diversos países.
Lena Katina e Julia Volkova nos tempos de t.A.T.u.
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Na verdade, elas eram consideradas ícones LGBTQ+ até que, anos depois, foi revelado que ambas eram heterossexuais e as cenas lésbicas eram uma estratégia de marketing do empresário. Mais tarde, uma delas chegou a dizer que não admitiria ter um filho gay.
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Joana acredita que, à medida em que a homossexualidade vem sendo entendida como parte do nosso cotidiano, esses casos foram desaparecendo. “A gente perde a necessidade de que isso seja colocado de forma provocante”.
“Lunch” prova essa virada. Conhecida por compor músicas sobre sua vida pessoal, Billie Eilish canta e age ignorando o impacto que a letra sexual poderia provocar. Como se fosse mais uma canção sobre a vida dela. E de fato é.
No vídeo, Billie entoa os versos em fundo liso, sem interagir com outras pessoas ou se vestir provocativamente. “A Billie traz um elemento diferencial, que é essa estética meio ‘butch’, meio ‘machinho’. É retomar a figura ‘dyke’, ‘sapatão’, de uma forma menos estigmatizada”, diz Thiago.
A cantora e sua musa
“É a minha de fé, minha preferida / Eu caso com essa mulher, vou parar lá em Maldivas” (“Maldivas”, Ludmilla)
A música brasileira já tem suas artistas sáficas há décadas. Angela Ro Ro se assumiu entre os anos 70 e 80. Marina Lima se ofereceu para ser o “homem para chamar de seu” nos anos 80. E Ana Carolina viveu fantasias com Madonna nos anos 2000.
Nos anos 2020, essa lista foi crescendo com novos nomes. As cantoras Carol Biazin e Day Limns, ambas ex-participantes do “The Voice Brasil”, conquistaram fãs por seus trabalhos individuais e pelo seu relacionamento, que acabou em 2022. Elas compunham juntas (Day e Carol assinam “Penhasco”, de Luísa Sonza) e trocavam declarações públicas de carinho nas redes sociais. Hoje, o repertório de ambas tem músicas de amor, decepção e sexo que falam de outra(s) mulher(es).
E é impossível falar desse assunto sem mencionar Ludmilla. A cantora, que já lançou algumas faixas que falam de mulheres, tem uma em especial que marcou sua carreira.
Ludmilla e Bruna
Reprodução
No sucesso nacional “Maldivas”, ela se declara para uma mulher que todo mundo sabe quem é. O clipe (hoje com mais de 39 milhões de visualizações) mostra imagens da cantora e sua esposa, Brunna Gonçalves, em lua de mel.
Ludmilla adota a mesma proposta de outras cantoras sáficas atuais: celebra a sua sexualidade como um elemento de seus shows, parte de quem é como artista. Mas no caso dela, trazer a vida pessoal para suas músicas trouxe também a sua musa para o centro do palco.
Em apresentações da música ao vivo, Brunna (que é dançarina da cantora) se afasta do restante do balé e se junta a Ludmilla sob os holofotes. Às vezes, elas encerram a música com um beijo, o que é aplaudido por fãs.
No caso delas, o amor do público não se restringe à cantora, como à sua musa. “Brumilla”, como elas são apelidadas, deixou de ser somente um casal de celebridades e passou a ser uma espécie de símbolo pop brasileiro. Elas aparecem em capa de revista, palcos internacionais, programas de auditório.
“[Pessoas LGBTQ+] sempre estiveram por aí, estiveram na cultura pop e no mundo. Há 20, 30, 40 anos existiam até relacionamentos de fachada. O que está conquistando lugar agora é a visibilidade. Pessoas confortáveis para viver a vida como elas de fato são”, afirma Joana.
Aos poucos, o sinal dos tempos aparece. Finalmente, há algum espaço (e muito público) para quem teve que esconder quem era por tanto tempo. Em entrevista ao “Profissão Repórter” em 2022, Ludmilla resumiu o que muita gente já percebeu: independentemente dos pronomes, o assunto dessas músicas não mudou.
“É maravilhoso ver pessoas de todas as idades cantando a música que fiz para a Bru. Afinal, é sobre amor”.
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