Expedição Canudos: estudantes levam atendimento médico à vilarejo que foi cenário de guerra no século XIX


Alunas são estudantes da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Sorocaba (SP). Elas viajaram até Canudos (BA), onde foram voluntárias de atendimento médico no mês de julho. Voluntários se deslocaram até Canudos, no sertão baiano
Arquivo pessoal
A região de Canudos, no sertão baiano, ficou nacionalmente conhecida após a histórica guerra que devastou a região no final do século XIX. O conflito armado com o Exército Brasileiro provocou a morte de mais de 25 mil pessoas, entre eles, seguidores de Antônio Conselheiro, beato e líder do povoado.
Hoje, quase 130 anos depois, a população de pouco mais de 16 mil pessoas, Canudos ainda sofre os reflexos do combate. Sem acesso regular à saúde, educação e internet, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do povoado é de 0,562, considerado um dos mais baixos do Brasil.
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Diante dos obstáculos, um grupo de estudantes do 4º ano de medicina da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de Sorocaba (SP), decidiu levar atendimento voluntário aos moradores da região. A expedição, que ocorreu entre os dias 3 e 9 de julho, contou com cerca de 21 participantes.
Para chegar até a região, o grupo viajou de avião da capital paulista até Petrolina (PE), cidade localizada a quase 200 quilômetros de Canudos. No município, as estudantes desembarcaram na comunidade do Raso, onde atenderam os pacientes no posto de saúde local.
Alicia Bernardes, de 20 anos, estudante e integrante da expedição contou ao g1 sobre a experiência, simpatia e hospitalidade dos moradores.
“Nós fomos recebidas pelo pessoal de lá, que nós chamávamos de ‘mainhas’ e ‘painhos’ mesmo, pois eram pessoas que nos adotavam temporariamente. Fiquei na casa de um casal de idosos junto de uma amiga e nós vivíamos a rotina deles. Acordávamos bem cedo com um café da manhã bem farto na mesa”, conta.
Projeto Canudos existe desde 2008 e leva estudantes de medicina para atendimentos voluntários na região
Arquivo pessoal
A também estudante Giulia de Moraes destaca o contraste de realidade que presenciou no povoado. A moradora de Sorocaba pontua, contudo, o sentimento de gratidão que os moradores de Canudos possuem com a vida cotidiana.
“Confesso que, ao chegar lá, tive um choque de realidade. Todos nós sabemos que existem realidades bem diferentes da nossa, no entanto, só é possível entendê-las ao vivenciá-las. Lá, tudo é bem mais simples, muitas vezes apenas com o necessário, mas que se torna o suficiente para os moradores. É muito bonito ver como eles são gratos por tudo”, destaca.
Além do Raso, os atendimentos médicos foram feitos em outras duas comunidades, no Rio do Soturno e Rosário. Todos foram feitos sob supervisão de médicas já formadas, que ministraram aulas na sede de encontro durante o tempo de permanência.
Estudantes atenderam pacientes de idades variadas
Arquivo pessoal
“Fizemos diversos atendimentos para toda a população, crianças, adultos, idosos, homens, mulheres, etc. A maioria incluía o básico, como aferir pressão arterial e ausculta física e pulmonar. Além disso, fizemos exames gerais e específicos para queixas de alguns pacientes, juntamente de papanicolau e exames ginecológicos e de mamas às mulheres”, explica Giulia.
“Nós também renovamos receitas de remédios e disponibilizamos os que recebemos anteriormente por meio de doações, junto de orientá-los como tomar as medicações corretamente. Canudos foi capaz de me proporcionar ensinamentos que eu levarei para sempre comigo, tanto na medicina como pessoalmente”, complementa.
‘O sertanejo é, antes de tudo, um forte’
Durante a semana de estadia, Izabela Fiuza comenta que alguns atendimentos marcaram sua memória para sempre. Entre eles, uma pessoa que não sabia sequer a própria identidade.
“Entre os aproximadamente 80 atendimentos que foram feitos, um que me marcou bastante foi um homem, que havia ido até o posto para fazer exames de rotina, que não sabia informar nada sobre si. Apenas o nome. Ele não sabia data de nascimento, idade, nome da mãe ou nada do gênero. Isso me deixou extremamente impactada”, relata.
Alunas realizavam atendimentos domiciliares e em postos de saúde das comunidades
Arquivo pessoal
Já para Ana Beatriz Roja, seu coração levará para sempre a história de um idoso que voltou a andar com a ajuda de seu cuidado médico.
“Lá, eu conheci um senhorzinho de bastante idade durante uma visita que fiz em sua casa. Ele havia voltado do hospital há pouco tempo, estava muito confuso e não conseguia andar. Ao examiná-lo, percebi que ele estava hipoglicêmico devido às altas doses do seu remédio. Voltei depois de dois dias e, ao chegar, vi que ele tinha voltado a andar e se comunicar”, compartilha.
Aprendizado
Estudantes destacam aprendizados para toda a vida
Arquivo pessoal
Todas as estudantes que estiveram na expedição destacam aprendizados profissionais e pessoais ao viverem a rotina de uma pessoa já formada, mas completamente fora da realidade em que estão inseridas.
Ao g1, Alicia destaca o desenvolvimento da parte humana e da importância de proporcionar um atendimento agradável e empático ao paciente. Para ela, o atributo é essencial para um bom futuro na carreira da medicina.
“Nós ficamos muito mecânicos na questão de atender, tudo é muito protocolado. Sempre gostei muito de atendimentos humanizados e, em Canudos, pude aflorar muito essa questão. Era legal demais poder conversar com as pessoas e ouvir suas respectivas histórias. Todos merecem um atendimento especial, com amor, empatia e um médico que saiba ouvir suas queixas, levando em conta toda sua vida”, conta.
Após o retorno, Giulia ressalta que o projeto lhe mostrou a capacidade de valorizar as pequenas coisas da vida. A felicidade da comunidade a ajudou a enxergar a vida com novos olhos.
“Aprendi a enxergar a beleza em tudo que existe ao ver as pessoas de Canudos felizes. Desde então, valorizo tudo o que tenho, mesmo o que é considerado ‘simples’ pelas pessoas. Aprendi que o Brasil é um país enorme, com inúmeras realidades e culturas e, todas elas possuem algo a nos ensinar. Lá, eu dei as risadas mais sinceras e gostosas da minha vida”, relembra.
Alunas destacam choque de realidade ao chegarem no sertão baiano
Arquivo pessoal
Já Giovanna Ragazzoni, que também participou do projeto, afirma que o sertão baiano foi crucial na reconexão com si. A partir dos vínculos criados no local, ela afirma que dar o seu melhor sempre que puder foi uma grande lição.
“A experiência me fez buscar a minha essência e mantê-la sempre. O projeto me ajudou a me reconectar comigo mesma e com os pilares da medicina. Desenvolvi uma boa relação médico-paciente, onde se demonstra o interesse pelo paciente em sua totalidade e a vontade de cuidar”, explica.
O impacto da viagem na vida de Izabela conseguiu atingir locais ainda mais distantes dentro de sua mente. Para ela, as pessoas são muito pequenas diante do universo e do mundo que vivem.
“Meu maior aprendizado foi em relação a pensar ‘fora da caixinha’. Tudo que nós tínhamos em Canudos era a prática clínica, a capacidade de cuidado e ter maior criatividade com os pacientes que precisavam de nós. Foi essencial para me tirar da zona de conforto e perceber meu tamanho no universo”, relata.
Estudantes participaram de atendimentos em diversas áreas da medicina
Arquivo pessoal
Na visão de Ana Beatriz, o mais importante de tudo é o agradecimento. Durante o período, ela se orgulha do desenvolvimento profissional que teve a partir dos atendimentos na região.
“De forma profissional, consegui ter o exemplo de três médicas excepcionais, que me identifiquei bastante durante o trajeto. A permissão de atender e passar a conduta sozinha, apenas sob observação, me fez pegar prática e entender as condições mais prevalentes. Canudos ajudou a ampliar meu repertório”, celebra.
Isabella Hildebrandi conta a valorização de uma boa clínica. Na ausência de recursos tecnológicos que existem em hospitais de grandes cidades, uma boa anamnese e exame físico eram obrigatoriamente necessários para suprir a carência.
“Sob o aspecto profissional, é importante dar valor para um bom exame físico, que é capaz de dar grandes esclarecimentos na falta de instrumentos que costumamos usar nas grandes cidades. No pessoal, sem dúvida, a valorização da simplicidade, das pessoas e das ações do nosso dia a dia”, finaliza.
Projeto Canudos
O diretor do Projeto Canudos, Victor Hugo Bigoli, afirma que a iniciativa existe há quase duas décadas. Com centenas de inscrições recebidas durante todo o ano, é feito um processo seletivo para selecionar os alunos.
“Quando era presidente do Instituto Brasileiro de Expedições Sociais, fui convidado para formalizar um projeto de saúde a longo prazo, lá em 2008 e, a partir desta vista, criamos a expedição. Ao decorrer do ano, recebemos inúmeros cadastros de pessoas interessadas, então, realizamos um processo seletivo das pessoas que realmente querem ir com o objetivo de definir as equipes que representará o Projeto Canudos”, explica.
*Colaborou sob supervisão de Matheus Arruda
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