Os riscos da inseminação caseira, usada por casais LGBTQIA+ para ter filhos


O procedimento não é amparado pela legislação no Brasil, mas não é proibido na prática. Especialistas alertam que alternativa à inseminação em clínicas envolve questões jurídicas e de saúde que devem ser levadas em consideração antes da opção pelo procedimento. O procedimento de inseminação sem acompanhamento médico não é amparado pela legislação no Brasil, mas não é proibido na prática
Agência Brasil
Desde criança, a publicitária Isabela Sampaio Dutra, de 31 anos, sonhava em ser mãe. Há nove anos, viu esse desejo aumentar após conhecer a também publicitária Danielle Silva Pacheco, de 40 anos.
Juntas desde então, o casal passou a pesquisar sobre alternativas para realizar o sonho de aumentar a família. Havia algumas maneiras de reprodução assistida ou então a adoção.
“Eu sempre sonhei em gerar um bebê, já a Dani não tinha essa vontade. Então decidimos que faríamos uma reprodução assistida e eu engravidaria”, conta Isabela.
Para realizar a técnica, o irmão de Danielle seria o doador do sêmen, assim elas não precisariam recorrer a um doador anônimo.
Porém, essa alternativa não foi muito bem aceita pela clínica de reprodução assistida em que elas fariam o procedimento.
“Quando falamos que queríamos que o irmão da Dani fosse o doador, a funcionária da clínica disse que eu teria que fingir que eu e ele éramos um casal”, conta Isabela.
“Aquilo não fazia sentido para a gente, até porque se fizéssemos isso, o nome dele sairia na certidão de nascimento do bebê, já que não tem como ‘recusar’ a paternidade nesses casos.”
Foi então que Isabela e Danielle decidiram recorrer a outra alternativa bastante comum entre casais de mulheres: a inseminação artificial caseira.
A técnica, que como o próprio nome já diz, é feita em casa e consiste em introduzir o sêmen do doador no útero da mulher que pretende engravidar, sem que haja sexo.
Para isso, é usado uma seringa, e o procedimento é feito sem ajuda de profissionais de saúde.
Apesar de ser feita fora de uma clínica de reprodução assistida, a publicitária conta que buscou orientação da sua ginecologista para não colocar em risco a sua saúde e a do futuro bebê.
“Fiz diversos exames para ver como estava a minha saúde, e o doador também fez”, diz Isabela.
“Mesmo não tendo relações sexuais, sabemos que a técnica pode transmitir algumas infecções. Como se trata de um doador conhecido e de nossa confiança, buscamos ao máximo nos proteger.”
Foram três tentativas até que veio o resultado positivo no exame de gravidez. Para a surpresa de todos, Isabela engravidou de gêmeos: Henrique e Maria Luiza, que atualmente têm 2 anos.
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Registro de dupla maternidade requer processo judicial
Para ter a dupla maternidade reconhecida, o casal Isabela e Danielle entrou com um processo judicial ainda durante a gestação.
A decisão saiu antes do nascimento dos bebês, que foram registrados com o nome das duas mães.
Esse tipo de situação tem sido cada vez mais comum, diz a advogada Bruna Andrade, especialista em direito LGBTQIA+ e co-fundadora do Bicha da Justiça, empresa de assessoria jurídica e educação sobre direitos LGBTQIA+.
“Percebemos um aumento na inseminação caseira e isso pode ser sentido na quantidade de casais que nos procura para entrar com processo de reconhecimento de dupla maternidade”, explica a advogada.
O alto custo das inseminações assistidas nas clínicas, que custam em torno de R$ 30 mil, está entre os principais motivos para pessoas buscarem a alternativa caseira, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem da BBC News Brasil.
Há planos de saúde que preveem em contrato a cobertura para inseminação, mas os medicamentos usados no tratamento, que custam em torno de R$ 10 mil, não são cobertos, o que implica em um custo com que muitas pessoas não podem arcar.
O procedimento também está disponível pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas há critérios para definir quem pode fazer a inseminação, como encaminhamento de um posto de saúde, diagnóstico de infertilidade, situações de aborto espontâneo e idade, o que limita o acesso ao serviço.
Atualmente há dez unidades hospitalares que oferecem o tratamento através do SUS no Brasil, e as regras de acesso ao serviço podem ter pequenas variações de acordo com cada unidade.
Há ainda entre os casais LGBTQIA+, segundo especialistas, o receio de buscar uma clínica e passar por um constrangimento, como no caso relatado por Isabela.
Casais homossexuais formados por mulheres são os que mais buscam esse tipo de procedimento, de acordo com Andrade.
A advogada ressalta ainda que há casais que buscam a inseminação caseira após tentarem a gravidez por inseminação em clínicas, não terem sucesso e não conseguirem mais arcar com os custos do procedimento.
“Os casais formados por mulheres são o maior fluxo, seguidos por transexuais. Com casais gays é mais difícil porque precisam de uma barriga solidária.”
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Técnica não é proibida
A inseminação caseira não é amparada por nenhuma legislação no Brasil. Apesar disso, a técnica não é proibida no país, explica a advogada.
Porém, o Conselho Federal de Medicina (CFM) veta a comercialização do material genético, ou seja, a cobrança pelo sêmen é proibida.
Quando o casal lésbico faz a inseminação caseira, um imbróglio é criado na hora de registrar o bebê, porque, para que a documentação seja feita com o nome das duas mães, é necessário apresentar o laudo da clínica de fertilização, segundo determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), segundo a advogada.
Quem opta pela inseminação caseira não tem em mãos um laudo deste tipo, por isso, é necessário recorrer à Justiça.
“É preciso entrar com processo judicial requerendo o reconhecimento da dupla maternidade. Para isso não é preciso esperar a criança nascer, podendo ser feito ainda durante a gestação”, acrescenta Andrade.
“O processo não costuma demorar, mas o tempo varia de acordo com cada cidade e comarca. Percebo que, quando ele é feito antes da criança nascer, a decisão sai mais rápido.”
O advogado Ricardo Calderón, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), enfatiza a importância da responsabilidade parental sobre a criança gerada por inseminação caseira. Ou seja, o casal que decidiu ter o filho precisa assumir todas as responsabilidades sobre a criança.
Calderón acredita que acabar com a exigência de laudo da clínica de reprodução assistida para registrar o bebê em cartório ajudaria a garantir os direitos dessa criança sem a necessidade de recorrer à Justiça.
“A facilidade desse registro com dupla maternidade ou paternidade garante às crianças diversos direitos como fácil acesso ao plano de saúde e, em caso de ruptura desse casal, o filho é amparado com direito a pensão alimentícia e também é garantido o direito de convivência familiar”, explica Calderón.
A advogada Bruna Andrade alerta ainda para um risco que a inseminação caseira implica: a reivindicação da paternidade, seja pelo doador, pela pessoa que gestou ou até mesmo pelo bebê no futuro.
“O doador pode até assinar um contrato dizendo que abre mão dos direitos de pai, mas esse documento não tem valor legal. Por isso é importante ter muito cuidado na hora de escolher um doador”, diz Andrade.
Situação que, segundo a advogada, existe devido à falta de legislação para a inseminação artificial caseira.
“A constituição familiar mudou e precisamos de uma regulamentação que proteja legalmente todos os tipos de famílias”, acrescenta.
Riscos para a saúde
Do ponto de vista da saúde, a inseminação caseira não é recomendada pelos médicos por apresentar diversos riscos à mulher e ao bebê.
A principal preocupação dos especialistas é a ausência de triagem do doador para infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), como HIV, hepatite B e C, sífilis e herpes genital.
Essas doenças podem ser transmitidas para a mulher e para o bebê durante a inseminação, podendo causar graves problemas de saúde, inclusive o risco de aborto espontâneo e malformação congênita do feto.
“O material genético usado em clínicas de reprodução assistidas, quando não é do parceiro, vem de um banco de doadores regulamentado pela Anvisa”, explica Rivia Mara Lamaita, presidente do Comitê Nacional de Reprodução Assistida da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
“Esse material passa por uma triagem para detectar possíveis doenças e, assim, preservar a saúde da futura mãe e do bebê.”
Além disso, a manipulação inadequada do sêmen e dos instrumentos utilizados na inseminação caseira aumenta o risco de contaminação por bactérias e fungos, presentes no ambiente ou no próprio corpo da mulher, podendo causar infecções.
“Há risco de infecções no útero, trompas e outros órgãos reprodutivos, que podem causar infertilidade e até mesmo sepse, uma infecção grave que pode levar mulher à morte”, detalha a ginecologista.
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