Sítio no interior de SP armazena material radioativo há quase 50 anos


Em Itu (SP), estão estocadas 3,5 mil toneladas do material também chamado de Torta II – ou ‘lixão atômico’, segundo os moradores; processo de guarda do material no local começou em 1975 e agora, o resíduo vai a leilão. Sítio no interior de SP armazena ‘lixo atômico’ há quase 50 anos
Ainda na década de 1970, um material radioativo passou a ser armazenado em um bairro rural de Itu, no interior de São Paulo. O que inicialmente seria algo temporário, passou a não ter prazo para ser removido e recebeu, dos moradores da região, o nome de “lixo atômico”, que foi estocado de forma clandestina e atualmente passa por processo de regularização.
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Material radioativa está estocado em Itu (SP) desde a década de 1970
Reprodução/ TV TEM
O g1 foi até Botuxim, bairro que fica a cerca de 30 quilômetros do Centro de Itu, para verificar a atual situação do “lixo” e como os moradores do bairro se sentem com a presença do material, que também está depositado em outras duas unidades da empresa, na capital paulista e em Caldas (MG).
No terreno, estão armazenadas 3,5 mil toneladas de Torta 2, um resíduo radioativo, proveniente do tratamento químico do minério da monazita (entenda o que é). O material, segundo as Indústrias Nucleares do Brasil (INB), é considerado de baixa radioatividade e precisa ser estocado seguindo normas de segurança.
O material que foi armazenado no Sítio São Bento, entre 1975 e 1981, fica dentro de sete silos, que são grandes depósitos em forma de piscinas retangulares, construídas em concreto, com paredes de 20 centímetros de espessura e superfícies internas impermeabilizadas.
Material conhecido como lixo atômico está estocado em três locais, sendo dois em São Paulo e um em Minais Gerais
Paulo Gaspar
Conforme a INB, o material foi depositado a granel, sem o uso de galões, como é feito com o material estocado em Minas Gerais.
Estes silos, em Itu, ocupam aproximadamente 800 m² e uma área isolada de 20 mil m², que fica dentro de um sítio que tem área total de aproximadamente 300 mil m².
Em 2021, houve movimentações do município para impedir que o material depositado no bairro Interlagos, na capital, fosse transferido para Itu.
Conforme a INB, material está estocado a granel na em sitio de Itu (SP)
Reprodução/ TV TEM
Clandestino
Em entrevista à TV TEM, em 2013, o ex-prefeito de Itu, Lázaro Piunti, que esteve à frente da prefeitura entre 1973 e 1976, afirmou que o material foi estocado na cidade foram clandestina.
“Foi descoberto em 1979. Eu não era mais prefeito. Ele [material radioativo] havia sido colocado clandestinamente, em 75, na zona rural (…) E foi em 75, que eu era prefeito. Então, foi uma agressão à autonomia do município”, afirmou.
Lázaro Piunti era prefeito de Itu, em 1975, quando o material começou a ser armazenado e disse em 2013 que material foi levado ao local de forma clandestina
TV TEM/Arquivo
De acordo com a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), hoje o local passa por um processo de regularização, por meio de licenciamento corretivo.
“A Cnen, na forma da Lei, exerce o controle regulatório sobre a Unidade de Estocagem de Botuxim, para garantir a segurança nuclear e proteção radiológica dos trabalhadores, do público e do meio ambiente. Importante salientar que, embora seja uma instalação fiscalizada pela CNEN, a Unidade foi construída em época anterior às etapas de licenciamento atualmente existentes, portanto, um licenciamento corretivo vem sendo implementado ao longo dos anos.”
Muro protege material radiativo estocado em sítio de Itu (SP)
Marcel Scinocca/g1
Quem monitora o material?
O monitoramento do material é de responsabilidade da INB, pelo Programa de Monitoração Radiológica Ambiental, que “prevê a monitoração de exposição à radiação ionizante, coleta de água de chuva, coleta de água de superfície, água subterrânea, água potável e sedimento”.
Conforme a INB, as medições da radiação ionizante são feitas com um instrumento chamado dosímetro. Esses equipamentos estão instalados em 15 pontos distribuídos pela área.
Além disso, a INB informou que também realiza o controle pluviométrico para monitorar o volume de chuva sobre a unidade e, com base nesse dado, faz uma avaliação para saber se alguma medida preventiva será necessária.
Os dados são compilados em um relatório anual que também contempla a série histórica de resultados dos mesmos parâmetros para permitir a avaliação de tendência, que são enviados para cinco órgãos fiscalizadores. São eles:
Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen);
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama);
Secretaria de Meio Ambiente do Município de Itu (SMA-Itu);
Defesa Civil do Município de Itu;
Companhia Ituana de Saneamento (CIS).
A poucos metros do sítio, existe um manancial. Embora o material esteja há quase 50 anos no terreno, a prefeitura afirma que não há indicativos de contaminação de áreas nos arredores do depósito, conforme relatórios oferecidos pelas Indústrias Nucleares do Brasil (INB) até julho deste ano.
A INB informou que mantém com a Cnen o Programa de Coleta Conjunta de amostras de água e sedimentos, onde os dados são comparados nos relatórios anuais, e que os resultados demonstram que o depósito da INB não altera os níveis de radiação nos mananciais.
Além disso, a Companhia Ituana de Saneamento também faz duas análises por ano em todos os mananciais, inclusive onde fica o depósito do Botuxim, e garantiu que ele não demonstra alterações ou irregularidades.
Imagem atual do local onde material conhecido como lixo atômico está estocado em Itu (SP)
Marcel Scinocca/g1
O que diz a última análise da INB?
Conforme um relatório publicado no site da INB, as análises realizadas nas águas superficiais da região e da represa, que abastece a Estação de Tratamento de Água Rancho Grande (Águas de Itu), mostram que a concentração de urânio está dentro do limite estipulado por órgãos federais para consumo humano. Os resultados, segundo a INB, demonstram que o depósito não altera os níveis de urânio nos mananciais.
A INB afirma que os níveis de urânio ao longo do percurso são naturais – muito abaixo do limite do Ministério da Saúde (0,03 mg/L) para água de consumo e do limite do Conselho Nacional de Meio Ambiente – Conama (0,02 mg/L) para águas doces.
Vida longa
Pelas respostas, não há perigo. Contudo, o físico e pós-doutor em energia nuclear no ambiente Paulo Massoni, do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), adverte: “Se algum dos compartimentos estiverem danificados, pode sim “vazar” radiação.”
“O urânio tem uma meia vida tão longa, que se fosse 100 anos de depósito dessas amostras, a atividade praticamente não mudaria. Mas depende do isótopo do urânio”, explica.
Ainda conforme ele, o ponto de maior atenção, a partir de agora, está no transporte do material, em eventual venda. “Existe uma distância segura. Mas seria bom tomar cuidado com as colocações já que irá a público”, diz.
Em caso de explosão ou vazamento no local, Massoni diz que “danificaria a contenção de radiação e isso iria para o ambiente. Mas explosão, seria por algo externo, não devido ao material radioativo.”
Imagem antiga mostra placa indicando local de estocagem de lixo atômico em Itu (SP)
Acervo Família Piunti
Em caso de vazamento, num eventual ruptura dos “containers”, por exemplo, o problema seria maior.
“Se vazar poderá contaminar solo, plantas e atmosfera. A blindagem é antiga e eu não sei o estado delas. Se for somente concreto, dentro de todos esses anos, qual a qualidade do concreto para contenção, etc. Tem que saber de todos os detalhes. O ideal é se além do concreto, tivesse chumbo na blindagem.”
O especialista também explica o que pode ocorrer na eventualidade dessas duas situações se concretizassem. “Com relação à radiação, existe uma grandeza física chamada atividade….essa atividade for elevada, o tempo exposto a ela, poderá causar quebra da molécula de DNA humana, ou mutação, levando à vários tipos de câncer, leucemia principalmente”.
O g1 questionou se o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que responde pelo licenciamento ambiental, já realizou alguma fiscalização no terreno e se acompanha a situação, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.
O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), que nos anos de 1990 abriu um inquérito para investigar a situação, tendo arquivado posteriormente o procedimento, foi questionado sobre como acompanha a situação de Itu, mas também não se manifestou.
Por que o material ainda está lá?
Unidade da INB, em São Paulo, onde parte da Torta II está estocada
Google Street View/Reprodução
A INB afirma que não realiza mais o processamento de monazita e que o material não tem mais utilidade para eles, mas que é um insumo estratégico para outros segmentos.
A monazita, segundo a INB, é um mineral natural encontrado ao longo da costa brasileira, principalmente entre a região norte do estado do RJ e o sul da Bahia. Os produtos desse mineral eram utilizados para produzir catalisadores, vidros especiais e ligas metálicas especiais como, por exemplo, o cristal de neodímio que gera o laser utilizado em cirurgias oftálmicas.
Leilões milionários
Em 2013, a INB tentou vender o material e fez um contrato com uma empresa chinesa. Uma audiência pública realizada em Itu debateu sobre a segurança do material no local e também sobre a transferência dos resíduos para a China, que teria comprado todo o material (das três unidades) por R$ 65 milhões, mas isso nunca aconteceu, pois a empresa não obteve as licenças ambientais para receber esse material na China.
Em junho deste ano, no entanto, a INB publicou um novo edital de oferta pública para vender todo o material armazenado em Itu, São Paulo e Caldas (MG).
INB coloca à venda mais de 15 mil toneladas de ‘Torta 2’ armazenadas em unidade desativada em MG
Reprodução EPTV
O material que está em Itu (SP) foi avaliado em R$ 14,3 milhões, em 2013. A INB afirma que, atualmente, não há uma estimativa para o valor dele e que, agora, a empresa aguarda a apresentação de propostas de eventuais interessados na compra que “irão refletir a avaliação do mercado atual”.
Lixo radioativo depositado em Itu há mais de 30 anos será retirado em 2014
Unidade da INB, em Caldas (MG), onde a maior parte da Torta II está estocada
Google Street View/Reprodução
O que pensam os moradores?
Se para quem vive longe do local, a primeira reação ao ouvir o termo “lixo atômico” é assustadora, quem vive na região diz não se preocupar. Alexsandro Garcia Lopes, que tem uma chácara perto do terreno, diz confiar na proteção do local enquanto ele não for movido.
“Medo a gente tem, mas medo, a partir do momento que saiu da porta da casa da gente, a gente tem que ter medo. Ali, [o material] tá quietinho, ninguém mexeu, ninguém vai ter medo. Está bem protegido, bem profundo,” afirma.
Alexsandro Garcia Lopes tem uma chácara em Itu (SP) próximo do local onde lixo atômico está estocado
Marcel Scinocca/g1
Já o jardineiro Luiz Augusto Muniz, que mora na região do Botuxim há 16 anos, diz que a rotina não permite que ele se preocupe com a situação do local.
“Não me incomoda, nunca ouvi falar a respeito de radiação, de fazer mal para a saúde. Eu morava um pouco longe daqui do lixão […] Sei que existe, agora o que acontece lá para dentro, o perigo que tem […] não posso dizer se pode ou não pode estar ali. Nunca tive problema a respeito disso”, afirma.
Luiz Augusto Muniz tem propriedade próximo do lixo atômico de Itu (SP)
Marcel Scinocca/g1
Francisco José Muniz da Silva mora no local há quase 30 anos e afirma que os moradores que vivem longe do Botuxim não costumam reclamar, mas quem mora perto reclama do cheiro forte. Ele também diz não concordar com a presença do material no terreno.
De forma resumida, veja os principais acontecimentos envolvendo a lixo atômico de Itu nos últimos 50 anos:
“[O lixo] com certeza não [deveria estar lá], tinha que estar em um lugar bem mais apropriado, bem mais longe, um lugar que não tenha população perto […] Não [tenho medo]. Morrer nós vamos morrer todos mesmo, então pra que ter medo de morrer, né? Mas que é ruim, é”, completa.
Francisco José Muniz da Silva é vizinho do lixo atômico de Itu (SP) há quase 30 anos
Marcel Scinocca/g1
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