Marina Lima percorre os caminhos modernistas que segue há 45 anos na viagem libertária do show ‘Rota 69’


Artista estreia no Rio show em que canta Billie Eilish, revive música dada para Maria Bethânia e dança ao som de Barry White em roteiro de rocks e baladas. Marina Lima toca guitarra no palco do Teatro Prio na estreia de ‘Rota 69’, show com o qual percorrerá o Brasil no segundo semestre de 2024
Rodrigo Goffredo
Resenha de show
Título: Rota 69
Artista: Marina Lima
Local: Teatro Prio
Data: 6 de agosto de 2024
Cotação: ★ ★ ★ ★ 1/2
♪ De olho no retrovisor, mas com as antenas ligadas no mundo de hoje, Marina Lima percorre no show Rota 69 os caminhos modernistas que segue há 45 anos desde que apareceu em 1979, empunhando guitarra na foto de Antonio Guerreiro exposta na contracapa do primeiro álbum da artista, Simples como fogo (1979).
Tanto que a primeira música ouvida (em off) na voz de Marina pelo público de convidados que lotou o Teatro Prio no Rio de Janeiro (RJ) na noite de ontem, 6 de agosto, foi trecho de Solidão (1958), tema da antecessora Dolores Duran (1930 – 1959) regravado por Marina no LP de 1979 que abriu alas femininas na MPB naquele ano marcado pelo aparecimento simultâneo de várias cantoras que também compunham.
Idealizado e dirigido por Candé Salles, o show Rota 69 segue roteiro retrospectivo montado por Fernando Muniz e Renato Gonçalves com inevitáveis interseções com os setlists da última turnê da artista, Nas ondas da Marina (2022 / 2024), e de shows anteriores de Marina.
A diferença reside na atmosfera mais teatral de Rota 69, show turbinado com projeções, mudanças de figurinos, interlúdios – com exposições no telão de poemas (como Guardar, obra-prima do irmão parceiro Antonio Cicero, presente na festiva estreia) e lyric videos, além de reproduções de áudios de gravações de músicas como Anna Bella (Marina Lima e Antonio Cicero, 2006) e I’m on fire (Robert Jason, 1977) no registro feito por Barry White (1944 – 2003) em 1979 no ambiente da disco music – e coreografias em clima de celebração.
Marina Lima toca violão em músicas como ‘O lado quente do ser’, uma das boas surpresas do roteiro do show ‘Rota 69’
Rodrigo Goffredo
Com título alusivo tanto à rodovia norte-americana Rota 66 (imortalizada como símbolo de liberdade da juventude dos EUA, pais onde Marina viveu a infância) quanto aos 69 anos que a artista fará em 17 de setembro, Rota 69 é show de letra, música e dança, esta bem representada pela participação elegante da bailarina Carol Rangel em vários números.
É show sobretudo para quem se afina com a ideologia desta cantora e compositora que pôs na pauta dos anos 1980 e 1990 temas – como a celebração do amor entre mulheres e do prazer sexual (“Sexo é bom”, explicitava Marina em verso icônico de Difícil, parceria com Antonio Cicero de 1985 naturalmente incluída no roteiro) – que somente começaram de fato a ser tratados abertamente pela sociedade no século XXI.
Marina fez tudo isso de forma pioneira se descolando da MPB, mais próxima de um pop cosmopolita ou então na batida do rock que move músicas como Acho que dá (Marina Lima e Tavinho Paes, 1982), presente no roteiro de Rota 69 com a pegada da banda formada pelos músicos Alex Fonseca (bateria e programações) Carol Mathias (teclados), Giovanni Bizotto (violão), Gustavo Corsi (guitarra).
Eficaz na intenção de oferecer boa panorâmica da estrada seguida por Marina Lima do álbum inicial Simples como fogo (1979) ao recente Novas famílias (2018), de cujo repertório a cantora pinçou Árvores alheias (Marina Lima, 2018) para Rota 69, o roteiro frustrou somente em uma das músicas mais surpreendentes da lista, O lado quente do ser (Marina Lima e Antonio Cícero, 1980), lançada na voz de Maria Bethânia.
Munida do próprio violão, Marina cantou a música, mas foi somente até o verso “Eu já quis ser bailarina”, ignorando toda a segunda parte da letra. Ficou a sensação de que o número foi interrompido no meio.
Fora essa música, Rota 69 seguiu quase sempre com grande fluência. Me chama (Lobão, 1984) – balada transformada em rock por Marina – surtiu o mesmo efeito catártico que Mesmo que seja eu (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1982), música que Marina ressignificou dois anos após a gravação original de Erasmo Carlos (1941 – 2022) em abordagem feita em Fullgás (1984), álbum que consolidou a trajetória da artista.
Marina Lima com o primeiro figurino usado no show ‘Rota 69’, no qual revisa 45 anos de carreira iniciada em 1979
Rodrigo Goffredo
Com participação da atriz Denise Stoklos, que interpreta via telão texto sobre a reciprocidade do amor, o show Rota 69 está calcado no passado de Marina, mas conecta a cantora com o presente através do canto de música recente de Billie Eilish, Lunch (2024), hit sáfico e dançante da cantora e compositora norte-americana. “Se todo mundo é mesmo gay / O mundo está na minha mão”, celebrou Marina ao cantar Na minha mão, parceria com Alvin L do álbum Pierrot do Brasil (1998).
Alvin L é o compositor de Não sei dançar (1991), introspectiva balada revivida por Marina ao lado da tecladista Carol Mathias, com toque minimalista da guitarra de Gustavo Corsi, em um dos pontos mais altos do show.
Rota 69 se beneficiou na estreia de ter entrado em cena em palco carioca, no Rio de Janeiro (RJ), cidade que é o habitat do cancioneiro de Marina. “Eu moro em São Paulo, mas eu não saí daqui. O Rio mora em mim”, gracejou Marina, jogando charme para o público ao voltar para o “bis longo”, iniciado com a delícia pop Eu te amo você (Kiko Zambianchi, 1985) e encadeado com a balada Nada por mim (Herbert Vianna e Paula Toller, 1985) – duas músicas apresentadas por Marina no álbum Todas (1985) – antes do arremate festivo com Nem luxo nem lixo (Rita Lee e Roberto de Carvalho, 1980) e Uma noite e 1/2 (Renato Rocket, 1987).
De fato, pareceu mesmo que o Rio mora em Marina quando ela cantou a obra-prima Virgem (Marina Lima e Antonio Cicero, 1987) emoldurada por belas vistas cariocas e, na sequência, imprimiu bossa à canção Preciso dizer que te amo (Dé Palmeira, Cazuza e Bebel Gilberto, 1986).
E também pareceu ao longo do show que, pela primeira vez, a questão da voz soou resolvida em cena. Marina reviveu músicas como Pessoa (Dalto e Claudio Rabello, 1983) – exemplo da habilidade da artista para se apropriar com requinte de composições alheias – com a voz inteira de cantora que já superou obstáculos físicos e/ou psicológicos. Uma cantora que caminha jovial para os 70 anos e que, afinal, sempre ofereceu em cena muito mais do que uma voz.
Entre saborosas obviedades como Acontecimentos (Marina Lima e Antonio Cicero, 1991) e algumas surpresas como Nightie night (Pat MacDonald e Márcio Miranda, 1993), música gravada pela artista no álbum O chamado (1993), Marina Lima percorreu feliz a estrada de Rota 69.
Nem o tropeço no Bloco do prazer (Moraes Moreira e Fausto Nilo, 1979), marcha-frevo que pareceu estar em rota alterada, fez o show perder a aura elegante que caracteriza a trajetória dessa artista cosmopolita como a cidade que habita, São Paulo (SP), mas para sempre atravessada pela obra pavimentada nos anos 1980 e 1980 com contorno carioca. A viagem de Marina Lima é libertária.
Marina Lima segue roteiro retrospectivo no show ‘Rota 69’, que estreou no Rio de Janeiro na noite de ontem, 6 de agosto
Rodrigo Goffredo
♪ Eis o roteiro seguido por Marina Lima em 6 de agosto de 2024 na estreia nacional do show Rota 69 no Teatro Prio, na cidade do Rio de Janeiro (RJ):
1. Solidão (Dolores Duran, 1958) – em off
2. Charme do mundo (Marina Lima e Antonio Cicero, 1981)
3. Acho que dá (Marina Lima e Tavinho Paes, 1982)
4. O lado quente do ser (Marina Lima e Antonio Cicero, 1980)
5. Me chama (Lobão, 1984)
6. I’m on fire (Robert Jason, 1977) – em off
7. Lunch (Billie Eilish, 2024)
8. Mesmo que seja eu (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1982)
9. Anna Bella (Marina Lima e Antonio Cicero, 2006) – em off
10. Difícil (Marina Lima e Antonio Cicero, 1985)
11. Na minha mão (Marina Lima e Alvin L, 1998)
12. Virgem (Marina Lima e Antonio Cicero, 1987)
13. Preciso dizer que te amo (Dé Palmeira, Cazuza e Bebel Gilberto, 1986)
14. Beija-flor (Xexéu e Zé Raimundo, 1993)
15. Acontecimentos (Marina Lima e Antonio Cicero, 1991)
16. Nightie night (Pat MacDonald e Márcio Miranda, 1993)
17. Pessoa (Dalto e Claudio Rabello, 1983)
18. Próxima parada (Marina Lima e Antonio Cicero, 1989)
19. Keep walkin’ (Marina Lima, 2011)
20. Bloco do prazer (Moraes Moreira e Fausto Nilo, 1979)
21. Pierrot (Marina Lima, 1998)
22. Árvores alheias (Marina Lima, 2018)
23. O meu sim (Marina Lima e Antonio Cicero, 1991) – em off
24. Pra começar (Marina Lima e Antonio Cicero, 1986)
25. À francesa (Claudio Zoli e Antonio Cicero, 1989)
26. Não sei dançar (Alvin L, 1991)
27. Fullgás (Marina Lima e Antonio Cicero, 1984)
Bis:
28. Eu te amo você (Kiko Zambianchi, 1985)
29. Nada por mim (Herbert Vianna e Paula Toller, 1985)
30. Nem luxo nem lixo (Rita Lee e Antonio Cicero, 1980)
31. Uma noite e 1/2 (Renato Rocket, 1987)
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