MP e Defensoria pedem que Justiça anule projeto de implementação do ensino cívico-militar em SP


Lei que autoriza implementação do modelo híbrido no estado foi sancionada em maio pelo governador Tarcísio. Para promotores e defensores, regulamentação da secretaria é ilegal. Escola cívico-militar em Taubaté
Divulgação/Prefeitura de Taubaté
O Ministério Público e a Defesoria de São Paulo deram entrada, nesta sexta-feira (19), numa ação para que a Justiça anule o regulamento da Secretaria Estadual da Educação (Seduc) que prevê a implementação do ensino cívico-militar nas escolas paulistas a partir de 2025 e detalha esse processo.
A ação civil pública foi elaborada por promotores e defensores especializados na área de educação. Segundo eles, a resolução da secretaria extrapola competências da pasta, além de afrontar princípios e regras da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e dos planos nacional e estadual de Educação, sendo, portanto, ilegal.
No documento, os profissionais também pedem que todos os atos decorrentes da resolução em questão sejam anulados, como a consulta realizada com diretores escolares, na qual eles puderam manifestar ou não interesse em aderir ao novo modelo de ensino.
Nesta quinta-feira (18), o g1 noticiou que apenas 14,9% dos dirigentes ouvidos pela secretaria demonstraram interesse em adotar o modelo cívico-militar em suas unidades de ensino.
Ao todo, a rede estadual possui 5.680 escolas sob sua administração. Porém, apenas 2.022 diretores puderam se manifestar na consulta, que era restrita às escolas que atendiam a critérios pré-definidos pelo governo, como baixo desempenho escolar, localização em áreas vulneráveis, dentre outros.
O g1 questionou a Seduc sobre a nova ação na Justiça e aguarda retorno.
Inconstitucionalidade
Após a sanção da lei que autoriza a implementação de escolas cívico-militares na rede de ensino paulista, o Partido Socialista e Liberdade (PSOL) deu entrada em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), se colocando contra o projeto.
Seguindo o rito usual, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), solicitou um parecer da AGU sobre o mérito. O órgão se manifestou em 28 de junho, classificando o modelo híbrido como inconstitucional.
Para Flavio José Roman, advogado-geral da União substituto, existem incompatibilidades entre a lei estadual e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que rege o ensino brasileiro nos níveis federal, estadual e municipal.
“Ao analisar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a Lei que instituiu o Plano Nacional de Educação 2014-2024, constata-se a ausência de qualquer menção ou estratégia que inclua a polícia militar como participante dos esforços de política educacional na educação básica regular”, afirmou.
No início de junho, o Ministério Público Federal (MPF) já havia enviado uma representação para o procurador-geral da República, Paulo Gonet Branco, na qual também afirmava ser inconstitucional a lei em questão.
O procurador federal Nicolao Dino sustentou os seguintes pontos no documento:
Escopo legislativo — cabe à União legislar sobre normas relacionadas às diretrizes e bases da educação nacional. Portanto, o Legislativo estadual não tem competência para regulamentar a implantação do modelo cívico-militar no estado;
Formação e concurso — seleção de militares da reserva para exercerem funções pedagógicas sem a exigência de formação específica ou aprovação em concurso público, como previsto na lei recém-aprovada em São Paulo, afronta o princípio constitucional de valorização dos profissionais de educação;
Desvio de função — a Constituição restringe a atividade policial ao policiamento ostensivo e à preservação da ordem pública. Logo, designar militares para exercerem funções pedagógicas seria enquadrado como desvio de função da força militar;
Efetividade atestada — a falta de evidências científicas ou estudos conclusivos que atestem que o modelo cívico-militar implique na melhora no comportamento dos alunos e na qualidade do ensino;
Nicolao Dino ressaltou ainda que a adoção do modelo proposto abre caminho para a infração do princípio da gestão democrática do ensino público, uma vez que permitiria a adoção de orientações próprias da formação militar, reduzindo o espaço para diálogo e exercício do senso crítico no ambiente escolar.
Os mesmos pontos foram levantados pelo PSOL na petição da Ação Direta de Inconstitucionalidade e sustentados pelo advogado-geral da União.
Com a manifestação do governo de São Paulo, que alega a constitucionalidade do projeto, e da AGU, a ação ainda precisa do parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR), somente então deverá ser enviada para votação em Plenário, uma vez que Gilmar Mendes definiu que a pauta tem relevância e não tomará decisão de forma monocrática.
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No início de julho, o Ministro da Educação, Camilo Santana (PT), também reforçou o aspecto inconstitucional do modelo proposto.
“Quando a gente encerrou esse programa no Ministério, a gente já dizia que era inconstitucional”, afirmou o chefe da pasta, relembrando o extinto Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim), criado durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL).
“Claro que os estados têm autonomia, nós estamos num país federativo, então, cabe também decisões estaduais, mas repito, toda e qualquer ação na área da Educação, e em qualquer área, precisa respeitar a Constituição e as leis. Espero que isso seja cumprido em todo o país”, destacou Camilo.
Tramitação
O texto, de autoria do governador Tarcísio Freitas (Republicanos), foi aprovado em 21 de maio pelos deputados da Assembleia Legislativa.
O PL recebeu 54 votos a favor e 21 contra em uma sessão marcada pela agressão e detenção de estudantes que protestavam contra a votação.
A proposta é também bastante criticada por especialistas na área da educação, mas segue defendida por aliados da gestão de Tarcísio. Dentre eles, o prefeito Ricardo Nunes (MDB). Em entrevista à rádio CBN, Nunes disse ser a favor de tal projeto na rede municipal da capital paulista.
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Inconstitucional?
Em carta de defesa da proposta enviada ao governador, o secretário da Educação, Renato Feder, explicou que as comunidades escolares irão optar por participar ou não do programa e serão priorizadas as instituições “situadas em regiões de maior incidência de criminalidade”.
Os policiais que devem trabalhar nas escolas são aposentados e atuarão desarmados.
Em abril, no entanto, a Advocacia-Geral da União (AGU) disse, em parecer encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF), que o modelo de escolas cívico-militares do Paraná é inconstitucional.
O advogado-geral da União, Jorge Messias, lembra que o programa das escolas cívico-militares foi revisto pelo governo federal após “incongruências com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e com o Plano Nacional de Educação” (leia mais abaixo).
Entenda o projeto:
O que muda no dia a dia dos alunos e professores
O modelo proposto mescla a presença de militares – que cuidarão da disciplina dos alunos – e de profissionais da educação – que serão responsáveis pelo conteúdo passado nas salas de aula.
“Cada escola aderente ao Programa Escola Cívico Militar contará com pelo menos um militar da reserva, que estará subordinado ao Diretor Pedagógico da unidade escolar, e sua atuação será restrita ao projeto de valor do Programa Escola Cívico-Militar”, diz a carta enviada por Feder.
Além disso, como apontado pelo secretário, os valores das escolas serão semelhantes aos das organizações militares.
“…o modelo é voltado para as práticas pedagógicas onde os estudantes são estimulados a cultivar o respeito à pátria, aos símbolos nacionais e aos direitos e deveres de cidadania. Além disso, são incentivados a desenvolver habilidades de liderança, trabalho em equipe e responsabilidade social, preparando-os para serem cidadãos conscientes e atuantes na sociedade”, afirma.
De acordo com o projeto de lei redigido por Tarcísio, as atividades extracurriculares desses colégios serão de responsabilidade dos militares e serão formuladas pela colaboração da Secretaria da Educação (Seduc) com a Secretaria da Segurança Pública (SSP) seguindo as seguintes diretrizes: “valores cidadãos, como civismo, dedicação, excelência, honestidade e respeito” e “habilidades que preparem o aluno para o exercício consciente da cidadania”.
Quais escolas vão participar
Os colégios municipais e estaduais de ensino fundamental, médio e de educação profissional podem participar do programa voluntariamente. O projeto é destinado exclusivamente às escolas públicas.
Segundo o texto aprovado pela Alesp, os critérios para a seleção das instituições de ensino participantes são:
a aprovação da comunidade escolar;
índice de vulnerabilidade social;
índices de fluxo escolar;
índices de rendimento escolar.
Além disso, a escola que deseja participar não pode:
ter aulas no período noturno;
ser uma instituição rural, indígena, quilombola ou conveniada;
ter gestão compartilhada entre Estado e municípios;
ter, exclusivamente, ensino para jovens e adultos;
ser a única unidade escolar da rede pública de ensino que oferte ensino fundamental e médio regular na zona urbana do respectivo município.
Responsabilidades da Seduc e das secretarias municipais
Ainda segundo o projeto de lei, estão entre os deveres das pastas educacionais:
apoiar financeiramente a execução e a implementação do Programa;
selecionar as escolas participantes (levando em consideração a vontade da comunidade escolar);
conscientizar a população sobre “a importância da implementação das Escolas Cívico-Militares”;
prestar apoio técnico e financeiro aos colégios participantes;
ofertar conhecimento adicional para os profissionais das instituições;
monitorar e avaliar as escolas participantes do programa;
realizar o processo seletivo dos policiais militares que irão atuar como monitores (para isso, devem consultar a SSP);
definir as diretrizes pedagógicas e a orientação das escolas do programa;
decidir quanto às demissões dos profissionais que atuarão nos colégios;
compra de uniformes para os funcionários.
Responsabilidades da Secretaria da Segurança no projeto
acompanhamento e avaliação do cumprimento dos deveres dos monitores;
fornecer informações sobre o comportamento dos monitores e possíveis processos criminais e administrativos em que eles estejam envolvidos;
apoiar tecnicamente o trabalho das secretarias municipais e da Secretaria da Educação.
Responsabilidades das escolas no projeto
É de dever das instituições de ensino participantes:
implementar o Programa Escola Cívico-Militar de acordo com as normas propostas pela Seduc e garantir as condições para isso;
garantir a qualidade do processo educacional;
prestar informações à Diretoria de Ensino e Secretaria de Educação sobre a execução do programa;
se certificar de que os princípios éticos respeito aos direitos humanos, a proteção à dignidade humana, o zelo pelos direitos fundamentais de toda a comunidade escolar e o respeito à diversidade não estão sendo feridos.
Críticas ao modelo e disparidade de remuneração
Organizações sociais de defesa da educação são contrárias à participação militar nas escolas.
Um dos pontos criticados é a diferença na remuneração entre os profissionais da segurança e da educação: o militar vai receber além do que recebe do exército, 2.5 Unidades Básicas de Valor (UBV) por oito horas trabalhadas. O que totaliza R$ 5.692,50 por mês.
Se ele trabalhar 40 horas semanais, que é o máximo permitido, em 20 dias vai receber mais do que o salário médio de um professor, só pela participação na escola – montante pago pela Secretaria da Educação.
O pagamento será feito pela SSP, mas os recursos serão enviados pela Secretaria da Educação. O piso do professor, da rede estadual com jornada de 40 horas semanais, é de R$ 5.300.
Outro ponto levantado por especialistas é sobre o enrijecimento e a militarização do projeto educacional.
“Minha principal crítica é a descaracterização das instituições escolares a partir da militarização. Essa escola tira o seu caráter de escola pública, de escola que atende a todos os públicos, de uma escola que segue princípios universais e se torna uma escola que vai funcionar a partir dos princípios da área de segurança, que são opostos à área da educação”, afirma Catarina de Almeida Santos, professora da UnB e integrante da rede campanha nacional pelo direito à educação.
“Área da educação está ali no princípio da liberdade de ensinar e aprender, da diversidade, a área da segurança vai trabalhar com princípio da hierarquização, da obediência e não da construção de diálogo”, complementa Catarina.
Priscila Cruz, presidente-executiva da Todos Pela Educação, também aponta os principais problemas do modelo:
Ideia de que escolas cívico-militares são melhores é equívoco;
Custam mais por aluno;
Fazem seleção por nível socioeconômico maior;
Disciplina é baseada nos valores militares e não na melhoria da gestão das escolas.
Claudia Costin, especialista em educação da FGV, alerta para o risco de robotizar alunos e diz que modelo não faz sentido em tempos de Inteligência Artificial. E ainda aponta:
Não é disciplina que leva ao engajamento;
Melhores exemplos no Brasil são de escolas civis em Pernambuco, que têm funcionamento integral e engajamento de alunos e professores
Questionado, o governo respondeu apenas que está buscando dar à sociedade mais uma opção para que ela escolha qual a melhor escola para seus filhos.
“É um processo que vai passar por uma consultada escolar. Tudo isso será discutido para ter uma relação mais harmoniosa possível”.
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